sábado, 28 de janeiro de 2012

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Gotas da India





Na Índia, não há separação entre rural e urbano. Mesmo nas grandes cidades ouvem-se galos cantando de manhã; vacas, cabras, macacos passeiam pelas ruas. A propósito, quando Gandhi foi à Londres, nos anos 40, desembarcou com uma cabra, seu suprimento de leite, presa numa cordinha.



quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

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Goa

Diálogo entreouvido numa ruela de Goa, território português na Índia por 400 anos: 

- A senhora é portuguesa? – perguntei a uma senhora que abria a porta de casa.

- Sou goense – respondeu com sotaque português.

- Ahhhh, portuguesa! – exclamei.

- Portuguesa não: goense – repetiu com firmeza. 

Eu, contente em ouvir da boca de uma nativa, em solo indiano, palavras de Camões, Machado de Assis e Manoel de Barros, gritei eufórico, para Márcio, do outro lado da rua: 

- Márcio, achei uma portuguesa!

Não falava da goense, mas sim da língua!



segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

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5. Kandy e o dente de Buda


Uma enorme estátua de Buda, multicolorida, recebeu-nos logo à entrada de Kandy; uma outra, branca e monumental dominando toda a paisagem, sinalizou das alturas nossa chegada ao coração do budismo. A cidade, serrana, bem arborizada, rodeada de montanhas, com um enorme lago no centro, é fervilhante, animada e barulhenta: trânsito denso a qualquer hora e em todo lugar, gente pululando no meio da rua, bazares para todos os gostos, estação de trem, mercado municipal gigante, templos hindus e, para completar, o Templo do Dente de Buda, que faz afluir todos os dias à cidade milhares de peregrinos. Fim de tarde, dia longo, cheio. Depois de dar várias voltas no lago à procura de um hotel, todos lotados, acabamos encontrando um, muito charmoso, bem no meio do furdunço: o pátio interno com colunas brancas e sacadas ao redor, plantas e mesinhas no centro, nos fez sentir num oásis de paz e tranquilidade. Certificamo-nos do preço, à vista do quarto: é tanto, certo? Right, right, foi o que ouvimos. Não era lá muito em conta, mas um oásis tem seu preço, e àquela hora era tudo o que queríamos:

- Ok, we stay here... we are going now pick our bags in the car and we come back in few minutes – explicamos ao recepcionista. Fomos até o carro, despedimo-nos do motorista, que voltaria naquele mesmo dia à Colombo, desenfreado com certeza, mas dessa vez, sem nossos sobressaltos. Pegamos as mochilas e ao nosso oásis retornamos, felizes da vida. Mas entre a ida ao carro e a volta ao hotel, em questão de minutos, o preço já não era o mesmo, mas muitas rupias acima. O recepcionista alegava - melhor dizendo, tentava nos fazer engolir - que nos mostrara um quarto double bed, mas que o preço acordado era para single e não double. Uma lógica, digamos, muito particular: o quarto é double mas o preço é por cabeça. Procurei chamá-lo à razão, indo pelo caminho inverso: se o preço era para um, por que nos mostrou um double? Se viu que éramos dois, por que nos deu o preço para um? Obstinado, ele não arredava pé da sua lógica fraudulenta. Chamei o gerente, que ficou no mesmo lenga-lenga:

- Sir, we have shown you a room with double bed, but the price we've given to you was for single – repetia ele num inglês mais para cingalês. 

Eu contestava olho no olho: não fora isso o combinado. E a lenga-lenga recomeçava. Foi quando lembrei de uma das lições básicas de nossa guia cor-de-rosa. Alguma coisa deu errado, tipo reserva de hotel, de trem? Não discutir, explicar bem direitinho, com bastante educação, pedir: “ai moço, por favor, a gente precisa pegar esse trem, senão a gente vai perder o avião”, que aí eles resolvem. Foi o que fiz, pelo menos, tentei:

- Ok, ok, you're are right, I misunderstood, I thought the room you've shown to us with double bed was for two, I'm sorry – disse assumindo o “erro” de ter entendido que o preço de um quarto com cama de casal é para double, não para single. Fica a lição - daqui em diante vou sempre perguntar: preço de double é para um ou para dois? Mas deixemos o “mal-entendido” para lá, argumentei com o gerente, o que importa é que estamos aqui, mochila na mão, cansados, já é tarde, saímos cedo de Colombo, o dia todo na estrada, já dispensamos nosso motorista, adoramos o hotel, queremos ficar, o senhor pode fazer um preço:

- Please, sir, do it for us, please – insisti. Não houve jeito, a lição cor-de-rosa não funcionou: para ficar no oásis, teríamos que compactuar com a fraude. Resolvemos ir embora: se o oásis tem valor, a palavra mais ainda.

De volta ao agito, entregamos para Ganesha, caminhando sem saber aonde ir. Paramos diante de um edifício branco e pomposo, arquitetura vitoriana, de esquina, bem em frente ao lago: Queen's Hotel. Deve ser caro, pensamos, mas não custa perguntar. O porteiro, uniforme branco, abriu-nos a porta de vidro dando para um ambiente amplo e luminoso, piso em mármore claro refletindo lustres e ventiladores de teto, escada e móveis em madeira escura, estofados azul, cortinas amarelas, buquê sobre a mesa, um recamier esquecido no canto: a elegância genuína dos antigos hotéis, que se deixam lentamente empalidecer sem jamais perder a classe. 

- We are full, sorry – disse-nos a recepcionista, sorriso bonito, sari verde e dourado. Agradecemos. Já íamos deixando o balcão, quando me ocorreu perguntar o preço da diária mesmo assim. Ela, respondeu-me algo que não compreendi muito bem. Pedi para repetir. - no problem, e repetiu com o mesmo sorriso bonito: no terceiro andar há um quarto vago, old-fashioned, precisando de alguns reparos; além disso, advertiu-nos, é um pouco distante, tem que subir muitas escadas e é bem no fim do corredor. Talvez Ganesha estivesse intercedendo por nós - pensei. 

- Old-fashioned? - indaguei na esperança de que a expressão não fosse um mero eufemismo. 
- Yes, a little bit old-fashioned – respondeu franzindo um pouco os olhos, sempre sorrindo, dando uma aliviada no old-fashioned - You may see the room, if you desire – acrescentou, dando-nos logo o preço - bem mais em conta do que o inicialmente acordado no oásis deixado para trás. 
- The price is for two? - indaguei escaldado. 
- Of course, sir - respondeu com ar de quem ouve uma brincadeira – it's a double room. Enfim, pensei, a lógica finalmente reencontrada.

Um funcionário com sapatos impecavelmente lustrados, nos guiou pelo labirinto de escadas e corredores muito compridos, sombrios e austeros, numa sucessão de passos quase sem fim. Quarto amplo, pé direito altíssimo, pequena janela, paredes com rachaduras, teto e chão de tábuas corridas: lençóis brancos bem esticados, guarda-roupa com espelho, par de poltronas, escrivaninha, cheiro de madeira encerada. O banheiro, a bem dizer, uma sala de banho: as mesmas tábuas no chão, louça branca, pia e banheira de pé, marcas de ferrugem. O old-fashioned no mais puro estilo inglês. Ficou a lição: perder um oásis pode ser a chave de um quarto feito para a gente. 
 


O famoso Templo do Dente de Buda ficava bem ao lado do Queen's Hotel, bastando atravessar a rua. Pássaros pretos em revoada no céu rosa violáceo, mais alvoroçados do que os tuc-tucs, pousaram no alto das árvores bem acima de nossas cabeças. Marcio levantou os dois braços batendo palma, provocando nova revoada num espetáculo maravilhoso: o bando fez um redemoinho ruidoso e espesso no ar, voltando a pousar nos galhos.

- De novo - pedi, empunhando a câmera, ante o desejo de fixar o instante preciso da palma que provoca o turbilhão no céu: uma, duas tentativas, feita a foto. 


  


Seguimos pela longa esplanada ladeada de jardins bem cuidados que conduz ao templo, um conjunto arquitetônico imponente de fachadas brancas e telhados vermelhos, e cuja relíquia, o suposto dente de Buda, que teria sido levado por um rei indiano ao Sri Lanka no ano trezentos e tanto, está trancada a sete chaves num relicário em ouro ricamente trabalhado. O dente propriamente dito ninguém vê, mas já foi tema de disputas e estórias fabulosas. Umas contam que os portugueses o roubaram e que ao tentar destruí-lo, o dente pulou e virou uma estrela: o que ninguém explica é como uma estrela foi parar dentro do relicário. Outras falam da explosão de uma bomba em frente ao templo: este foi abaixo, mas o dente permaneceu intacto. Fato é que, estando ou não ali, sendo ou não de Buda, o dente move multidões. Deixados os sapatos no house shoes no lado de fora, juntamo-nos ao monte de peregrinos em fila no interior do templo, à espera do Puja, cerimônia religiosa. Portal esculpido em mármore, pinturas coloridas no teto, pilares em pedra trabalhada, bandeirolas nas cores do budismo - azul, amarelo, vermelho, branco e laranja - entalhes em madeira, dourações por toda parte, perfume forte de flor e incenso. No altar, uma escultura enorme de Buda em ouro, outras menores em mármore, dentes de elefante gigantes em marfim. A disposição dos fiéis sobre uma grande mesa, flores de lótus e florzinhas brancas e amarelas em profusão, cuidadosamente arrumadas em pratinhos de plástico, juntamente com velinhas acesas, prontos para a oferenda feita pelos fiéis, junto com algumas rúpias, às mãos do sacerdote. Tambores e instrumentos de sopro tocados por homens de turbante e sarongue branco, faixa laranja à cintura, peito nu e colares, deram início ao Puja. A pequena cortina vermelha com bordados dourados abriu-se, dando a ver o relicário reluzente: a fila vai andando, os fiéis passando, contrição e devotamento, tum-tum-tum mesclado de sons estridentes às alturas. Diante do altar, parar ou fotografar não é permitido. Oferendas entregues, um pequeno unir de mãos, uma reza, uma intenção, um pedido talvez, uma espiadela na relíquia, a benção do sacerdote no meio da fumaça dos incensórios: a cada um, alguns segundos de glória junto ao dente oculto de Buda. Puja terminado, cortina fechada, relicário velado, de volta à rua. 

A longa espera pelo dente abriu-nos o apetite: um restaurante ao lado do templo foi nosso destino. Vazio, algumas mesas apenas, um casal ao fundo, luz fraca, paredes verdes, retratos dependurados. Aguardamos o serviço, nenhum sinal. A fome era tanta que, procurar outro lugar, nem pensar. Lá pelas tantas, apareceu o garçom, um senhor aparentando muita idade, simpático e gentil, desses que andam bem devagarzinho procurando uma poltrona para não cair. Só falava cingalês, e os pratos, todos cingaleses. Pedimos peixe, not spicy please, not spicy - insistimos gesticulando - e one beer. Ele repetiu sorrindo: not spicy, one beer - e lá se foi com seu passinho para a cozinha. Voltou trazendo uma garrafa onde se lia Ginger Beer. Provamos: refrigerante com aroma de gengibre, puro doce. No restaurante do velhinho, cerveja, só no rótulo da garrafa. Ele foi-se de novo lá para dentro, o casal saiu, ficamos nós dois, à luz fraca, Ginger Beer sobre a mesa. Finalmente o velhinho voltou, em idas e vindas sucessivas à cozinha: o peixe era acompanhado de vários pratinhos e molhos cingaleses, trazidos um a um, todos um spicy só. Salvou o arroz, alvo, soltinho, suave, porção enorme. E a imagem do velho garçom, pé ante pé, trazendo a conta feita a lápis, num papel áspero e desbotado: esqueceu-se de anotar o ginger beer. 

A caminho do hotel, céu de estrelas sobre o lago: ficamos imaginando o dente de Buda pulando até chegar lá no alto. O dente na esfera celeste, nós em Kandy, no mais old-fashioned dos mundos.