sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

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7. O espetáculo dos sentidos





Fomos a pé até o templo hindu que fica atrás da estação de trem e cujo gopura – portal de entrada piramidal coberto com figuras de deuses – avistamos de longe, multicolorido.

- Eu li que essas figuras – disse Marcio - são feitas em argila e depois pintadas. A cada doze anos, elas são restauradas, repintadas e reconsagradas. No templo de Madurai, nossa primeira cidade no sul da Índia, há doze gopuras, alguns têm mais de cinquenta metros – concluiu.

Eu, que já estava impressionado com a vivacidade e o colorido daquele gopura, de apenas alguns metros – deuses dançando, sorrindo, fazendo careta, uns sentados, outros montados em pavões - fiquei imaginando o que seriam doze, medindo dez vezes mais. Me dei conta, naquele momento, de algo que eu já pressentia e que, então, apareceu-me de maneira evidente: mais do que um pais com características próprias, o Sri Lanka estava sendo para nós uma iniciação à Índia. Diversidade de culturas, línguas, religiões, cores, aromas, sons - tudo em escala infinitamente menor.

Tiramos o sapato, ritual obrigatório em todos os templos. Cocos abertos secavam ao sol, no pátio de entrada: depois da oferenda, são reaproveitados na fabricação de óleo utilizado para acender chamas, exalando um perfume suave dentro dos templos, misturado ao cheiro de incenso. Passamos pelo pórtico junto aos fiéis que tocam o chão e as paredes com as mãos, batem o sino, pedindo licença: o ritual religioso – o puja – começaria dali poucos minutos.

O puja pode ser feito em qualquer lugar, em publico ou em privado, e nos templos, geralmente é realizado de manhã bem cedo, ao meio-dia, e ao cair da tarde. Oferendas são preparadas em bandejas forradas com folhas de bananeira repletas de frutas tropicais, chamas acesas dentro de cocos. A luz natural filtrada por grandes janelas dispostas no alto, em torno do corpo central: uma atmosfera leve e diáfana, num jogo de diagonais solares em meio à fumaça dos defumadores. No altar central, Shiva, o deus destruidor ou transformador, que forma juntamente com Brahma, o deus criador, e Vishnu, o deus preservador, a trindade hindu. Nandi, o touro branco sagrado, símbolo da força física e da violência (também da energia sexual), escudeiro fiel de Shiva, guarda a entrada do templo, sempre voltado para o altar principal: montar o touro branco significa dominar a violência e controlar sua própria força. Ao redor do altar central, uma sucessão de altares menores - cada um dedicado a uma deidade, creio eu - cobertos por figuras de deuses, em cores fortes e vibrantes, acompanhados de graciosos elefantinhos. Cadeiras e bancos, no interior do templo, não há, passagem ou corredor tampouco: o chão, de tudo e de todos, é o lugar - nele se senta, se ajoelha, reza-se, ri-se, conversa-se, deita-se também. Homens jogam-se de bruços, rosto colado no chão, braços esticados à frente, em reverência a Shiva. Cada um escolhe a modalidade corporal para interagir com o divino: o bebê posto pela mãe sobre o chão, já vai experimentando a sua. Lado a lado, numa galeria, esculpidos e pintados em tamanho natural, um cavalinho, um leão, um touro branco e um pavão, numa estética lúdica e fabulosa; noutro canto, um altar sobre quatro rodas, em madeira entalhada, base dourada, colunas e teto coloridos feito um carro alegórico em miniatura: nunca pensei ver um templo religioso tão próximo de um barracão de escola de samba.

Batidas de tambor, bimbalhar de sinos, toque de corneta, hora de acordar os deuses. Começa o puja: sacerdotes - panos enrolados à cintura, colares, sem camisa - dão inicio ao ritual, batem o sino, lavam a divindade, ungem-na com óleos e pasta de sândalo, cobrem-na com panos e guirlandas. Em seguida, recebem as oferendas - o prasad, alimento consagrado (frutas, comidas), quase sempre algumas rúpias - levam até o altar, depois retornam apresentando a chama sagrada as fiéis, que estendem as mãos sobre ela para receber o darshana, a bênção divina. É o clímax do puja: a divindade, vestida e ornamentada, está “presente” junto aos fiéis. Uma parte das oferendas lhes é devolvida - esse gesto talvez seja uma metáfora hindu do preceito cristão: é dando que se recebe. O puja dura poucos minutos e termina sem grande formalidade. Quando tambor e sinos calam, sacerdotes sentam-se à vontade encostados nas pilastras, batem papo, brincam; fiéis dão voltas em torno do altar de Shiva, tocam Nandi, Ganesha e a si próprios, curvam-se no chão, falam com os deuses em voz alta, rituais prosseguem nos altares menores ao redor.

Nos templos hindus, a celebração não tem fim, o fervor sempre se renova, a devoção se personaliza, numa miríade contínua de cores, perfumes, gestos. A impressão que se tem, é que os deuses são ao mesmo tempo cruéis e afáveis, temíveis e sedutores, poderosos e brincalhões: eles gostam de ver, sentir, cheirar, provar, ouvir, tocar. E preciso adorá-los não somente com a alma, mas sobretudo com o corpo: a celebração hindu é um espetáculo de sentidos que transborda toda e qualquer hierarquia, cada um sabe como abordar e encantar um deus que é todo seu.




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